Por Cleuzany Lott
O que começou como um hobby ou uma forma artística de produzir bonecas hiper-realistas, conhecidas como bebês reborn, vem tomando proporções inesperadas e preocupantes no Brasil. Estes bonecos, que simulam com incrível realismo recém-nascidos, ultrapassaram o limite do brinquedo ou objeto de coleção. Hoje, estão sendo tratados por algumas pessoas como filhos reais — levados a consultas médicas, citados em disputas judiciais por guarda compartilhada, e até usados para obter benefícios públicos.
A seriedade da situação me atingiu de forma concreta quando passei a ser consultada sobre questões envolvendo a presença desses bonecos em condomínios. Entre os temas trazidos por moradores, surgiram dúvidas sobre como lidar com o barulho provocado pelo “choro” do reborn, se eles poderiam brincar no parquinho do prédio e, mais alarmante, o caso de uma senhora idosa que vive sozinha e ganhou um bebê reborn para lhe fazer companhia. Este último episódio acendeu um alerta importante: o fenômeno reborn expõe a solidão de muitos idosos e escancara a necessidade de olharmos com mais atenção para essa parcela da população, especialmente em ambientes como os condomínios.
A realidade dos números
Segundo o Censo Demográfico 2022 do IBGE, 5,6 milhões de idosos vivem sozinhos no Brasil, sendo 1,3 milhão apenas no estado de São Paulo. A porcentagem de domicílios unipessoais saltou de 12,2% em 2010 para 18,9% em 2022, e os idosos (60 anos ou mais) representam 28,7% desse total.
Neste contexto, o bebê reborn surge não apenas como um brinquedo, mas como um companheiro simbólico diante da solidão. Embora possa ter algum efeito terapêutico em determinados casos, a relação afetiva intensa com o boneco pode esconder questões psíquicas complexas, como fuga da realidade, necessidade de pertencimento ou substituição de relações humanas por vínculos unilaterais.
A resposta do poder público
O tema chegou ao Congresso Nacional. Três Projetos de Lei (PLs) foram protocolados na Câmara dos Deputados em 2025:
O PL 2323/2025, da deputada Rosângela Moro (União Brasil-SP), propõe diretrizes para acolhimento psicossocial de pessoas que desenvolvem vínculos afetivos com objetos. Já PL 2326/2025, do deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), visa proibir o atendimento a bonecos reborn em unidades de saúde públicas e privadas, evitando desperdício de recursos e desvios do serviço médico e o PL 2320/2025, do deputado Zacharias Calil (União-GO), busca aplicar sanções administrativas a quem utilizar bonecas para obter benefícios como assentos preferenciais e atendimento prioritário.
Outros parlamentares, em nível estadual, também apresentaram propostas semelhantes. Em Minas Gerais, o deputado Cristiano Caporezzo (PL) quer proibir esse tipo de atendimento. No Rio de Janeiro, o deputado Rodrigo Amorim (União) propôs um programa de apoio à saúde mental para pais e mães de reborn. No município do Rio, o “Dia da Cegonha Reborn” foi aprovado e aguarda sanção do prefeito Eduardo Paes.
Visando o acesso de crianças carentes ao boneco, o prefeito de Sorocaba (SP), Rodrigo Manga (Republicanos), lançou o programa “Brincando com o Bebê Reborn”, que permite que crianças brinquem com os bonecos por 20 minutos em parques da cidade.O programa, apesar de lúdico, mostra como o mercado reborn tem ganhado visibilidade institucional.
A linha tênue entre o brincar e o delírio
Partos simbólicos, registros de nascimento, creches fictícias e homenagens em datas comemorativas fazem parte do universo reborn. Embora esse mundo seja, em parte, sustentado por aspectos lúdicos e comerciais, a linha entre o relacionamento saudável e o patológico com o reborn está se tornando cada vez mais difícil de discernir.
Especialistas apontam que a relação excessiva e emocional com bonecos pode estar associada a solidão extrema, dificuldade de lidar com frustrações, desconexão com a realidade e, em casos mais graves, traços de narcisismo e egoísmo.
O papel dos condomínios e o Estatuto do Idoso
Em muitos condomínios, como onde atuo, os síndicos estão começando a perceber que o fenômeno reborn é um termômetro de um problema social mais profundo. Ele evidencia, sobretudo, a vulnerabilidade emocional de idosos que vivem sozinhos.
Neste cenário, o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) torna-se uma ferramenta indispensável. Ele protege os idosos contra abandono afetivo e psicológico (Art. 43 a 45 e 99 a 108), e impõe responsabilidades à família, à sociedade e ao Estado no combate à negligência, garantindo dignidade, inclusão e respeito à pessoa com mais de 60 anos.
É fundamental que condomínios adotem uma postura ativa: promovendo ações de acolhimento, escuta, atividades coletivas e monitoramento da saúde emocional dos moradores idosos. O bebê reborn, nesse contexto, deve ser visto como sintoma de um isolamento mais profundo, não a solução para ele.
Uma mensagem de cuidado
O fenômeno dos bebês reborn é, sem dúvida, multifacetado. Pode ser arte, brinquedo, terapia, ou fuga. Mas ele também é sinal de alerta para as lacunas afetivas, sociais e institucionais que muitas pessoas — especialmente os idosos — enfrentam.
Enquanto o Congresso debate limites e regulamentações, nós, como sociedade, temos o dever de olhar para além da aparência do boneco e enxergar o ser humano que está por trás dele. Que essa discussão sirva não para o escárnio, mas para a empatia e, acima de tudo, para criar ambientes mais humanos, atentos e acolhedores para aqueles que mais precisam.
Cleuzany Lott é especialista em Direito Condominial, Presidente da Comissão de Direito Condominial, 3ª Vice-Presidente da Comissão de Direito Condominial de Minas Gerais, Diretora Nacional de Comunicação da Associação Nacional da Advocacia Condominial (ANACON).