Após reportagem exclusiva de O DIA Niterói, no final de setembro, foi revelado um esquema suspeito de expropriação judicial de imóveis de devedores de taxas condominiais, envolvendo síndicos, conselhos fiscais, advogados, leiloeiros, administradores de condomínios e até funcionários dos próprios condomínios.
Nos últimos anos, após a pandemia de Covid-19, a abertura e a celeridade de processos deste tipo – normalmente após síndicos negarem propositalmente a recalcular e repactuar as dívidas – está levando, sem necessidade, imóveis a leilão, e deflagrando um grave e sorrateiro crime: a expropriação indevida de bens garantidos constitucionalmente.
Caso o proprietário perca o imóvel, é preciso acionar a justiça e comprovar o esbulho possessório, ou seja, o ato de usurpação pelo qual uma pessoa é privada (ou espoliada) de coisa de que tenha propriedade ou posse. A partir daí é necessário promover a reintegração de posse – já que o ocorrido pode ser classificado como turbação, isto é, qualquer ato, direto ou indireto, manifestamente contrário, no todo ou em parte, à posse ou direito de posse de outrem.
A reportagem apurou que, em Niterói, há advogados especializados em executar condôminos inadimplentes e que são ligados a leiloeiros – deflagrando um claro conflito de interesses e escancarando o esquema suspeito. Ao tentar expropriar imóveis através do sistema judiciário, os envolvidos utilizam brechas legais para aplicar golpes contra proprietários endividados e tratá-los como criminosos, quando são apenas devedores. O imbróglio é grande e muito injusto.
COMO ACONTECE O GOLPE
Segundo relatos de vítimas e advogados especializados, o esquema se inicia com a cobrança de taxas condominiais atrasadas. Mesmo quando há tentativa de acordo por parte dos proprietários — com propostas de parcelamento ou renegociação — os representantes do condomínio recusam qualquer conciliação. Em seguida, o imóvel é levado a leilão judicial com uma rapidez incomum, muitas vezes sem que o dono tenha sido devidamente notificado ou tenha tido tempo hábil para se defender. O valor de avaliação costuma ser abaixo do mercado, e os compradores — frequentemente ligados ao próprio grupo — arrematam os bens por preços irrisórios.
Hoje em dia, o proprietário ou herdeiro de um imóvel com dívida só pensa em como evitar cair nas garras dessa máfia, verdadeiras quadrilhas cujo único intuito é lucrar ao utilizar a justiça para prejudicar a moradia de pessoas vulneráveis ou sem consciência jurídica. O ideal seria o bom senso e uma boa conversa. Mas nem sempre conversar com o síndico adianta, já que o crime é premeditado.
Na Assembleia Ordinária, onde é o momento para aprovar ou não as contas, aparecem apenas o síndico, conselheiros e alguns proprietários já devidamente combinados em seus discursos. O próprio síndico pega procurações de moradores desinteressados em participar de reuniões, e ganham poder de decisão para fazer valer sua vontade própria. Os casos mais graves, além do óbvio conluio, envolvem perseguição ao condômino por razões adversas à dívida em si.
ABUSOS MORAIS
Muitos proprietários estão reclamando de serem tratados como criminosos ou bandidos pelos representantes de seus condomínios, unicamente por estarem devendo parcelas e querendo renegociar. “A síndica do condomínio onde tenho imóvel publicou, na Ata do condomínio, que eu estava querendo fugir da dívida. Ora, vejam se isso é termo que se use em uma Ata condominial para tratar destes assuntos. Logo eu, morador do mesmo imóvel há 33 anos. Além do desrespeito, é totalmente contraditória e infeliz a humilhante colocação, já que ninguém que busca acordo, está adimplente com o condomínio e mora a três décadas no mesmo lugar, pode ser considerado em fuga”, diz um morador do Jardim Icaraí.
Ana, moradora do Fonseca, expos seu caso. “Após acordos e diversos pagamentos que denotam boa-fé, tive novamente dificuldades financeiras por conta de um acidente, logo em seguida veio a COVID e não consegui cumprir o acordo. Mesmo com as propostas de repactuar o acordo que eu e meu advogado oferecemos diversas vezes, o síndico e a administradora nos ignoraram. Em menos de três meses, meu apartamento foi leiloado por menos da metade do valor real”, relatou ela, que está recorrendo na justiça para retomar seu imóvel, parcelar a dívida e cobrar danos morais e materiais do condomínio.
Já Ricardo Lack, através de sua rede social, publicou um relato do seu caso. “Passei por isso. Eu querendo pagar a dívida com juros, correção e multas, e a síndica criando dificuldade para receber e ameaçando leiloar meu imóvel. A dívida não chega a 3% do valor do meu imóvel. Um absurdo. Deve ser uma máfia mesmo”, disse o proprietário.
Hanna Eltz comentou o que sabe. “Eu conheço uma administradora localizada em Niterói, que age de forma totalmente irregular. Aceitou administrar o condomínio onde moro sem qualquer aprovação em assembleia, contrariando o que determina a convenção do prédio. Na época, o jurídico do condomínio era sócio desta administradora, configurando evidente conflito de interesses. A síndica, sem mandato vigente, migrou as contas do condomínio para esta administradora. Ela e o jurídico já ameaçaram um condômino fiscalizador com queixa-crime de stalking, simplesmente por ele exigir documentos que são legitimo direito. Diversas denúncias de irregularidades foram expostas em assembleias e enviadas ao Conselho Fiscal, que também ameaçou o condômino fiscalizador. Vale destacar que o Conselho foi escolhido pela própria síndica, desrespeitando a convenção. O prédio está tomado por panelinhas, enquanto os poucos que percebem as irregularidades não têm voz e nem participação nas reuniões. O condomínio virou terreno de manipulação e abuso”, relatou ela.
Morador de Niterói, Thiago Marques também deu seu depoimento: “Problemas como esses são bastante comuns. Sou sócio de uma empresa do ramo e, em diversas ocasiões, ao recebermos um novo cliente, nos deparamos com um rombo significativo nas contas do condomínio. Muitas administradoras acabam sugando cada vez mais, alegando que o condomínio não pode ter conta própria e forçando o uso da chamada conta pool – um modelo em que todas as receitas e despesas passam pela conta da própria administradora. Na maioria das vezes, essa prática é aplicada sem qualquer real necessidade. Infelizmente não são casos isolados”, confirma ele.
JUSTIÇA COMO FERRAMENTA DE PRESSÃO
A denúncia mais grave é o uso da Justiça como instrumento de coerção. Advogados apontam que há conivência de alguns cartórios e varas cíveis, que homologam os processos sem considerar os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
“O direito de propriedade é inalienável e garantido pela Constituição. O que estamos vendo é uma distorção do processo judicial, onde o morador é tratado como criminoso por dever taxas condominiais”, afirma o advogado Paulo Mendes, especialista em direito imobiliário.
Além do impacto humano e social causado pela perda patrimonial, os moradores enfrentam traumas psicológicos, desestruturação familiar e dificuldades para recomeçar. Muitos são idosos, pessoas com deficiência ou famílias em vulnerabilidade social. “Fui despejada com meu filho autista. Não houve empatia, nem diálogo. Só pressão e ameaça”, contou Joana, uma das vítimas da máfia dos condomínios.
“É preciso que o Judiciário reveja sua postura e que os órgãos de fiscalização atuem com rigor. Estamos diante de uma violação sistemática de direitos fundamentais”, alerta o jurista Ricardo Antunes.
MOBILIZAÇÃO E RESISTÊNCIA
Em Niterói, movimentos sociais e associações de defesa do consumidor se organizam para enfrentar o problema. Petições públicas, ações coletivas e denúncias ao Ministério Público estão sendo articuladas para frear o avanço dessa prática ilícita. Uma das vítimas já procurou um vereador da cidade, sugerindo que este assunto seja debatido em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal, devido à gravidade do tema, que está se tornando uma epidemia na cidade.
Procurado pela reportagem, o Procon Niterói informou que “não tem atuação no caso porque não se trata de uma relação de consumo”.
Algumas vítimas estão se unindo para denunciar, juntas, o abuso ao Superior Tribunal Federal (STF), o guardião da Constituição — justamente aquele que afirma que a moradia é um direito inalienável.
O QUE DIZ A COMISSÃO DE LEILÕES DA OAB NITERÓI
A Presidente da Comissão de Leilões da Associação Brasileira de Advogados (ABA) e da OAB Niterói, a advogada e leiloeira pública oficial Fernanda Freire, esclareceu, em nota, que “a cobrança de cotas condominiais é um direito legitimo e um dever legalmente assegurado aos condomínios – não podendo ser confundida com qualquer prática abusiva ou irregular. A cobrança judicial – que culmina, em último caso, na penhora e no leilão do imóvel – é o instrumento legal previsto pelo Código de Processo Civil (art. 784, X) para reestabelecer o equilíbrio financeiro e coletivo. A Comissão de Leilões da OAB Niterói reafirma que a maioria dos síndicos age com boa-fé, transparência e respaldo assemblear”. A nota diz, ainda, que “não se pode generalizar casos isolados para deslegitimar todo sistema condominial, e o que o discurso emocional de inadimplentes não pode se sobrepor ao cumprimento da lei”.