Tem sido recorrente, na doutrina e na prática forense, a máxima de que, em certas situações obrigacionais, quem deve é a coisa, e não a pessoa. Essa retórica explicativa pode ser um bom artifício didático. Porém, interpretá-la literalmente pode conduzir a equívocos sobre a transmissibilidade das obrigações propter rem. Obrigação propter rem é um dever jurídico que surge diretamente da titularidade de um direito real sobre um bem, e não de um contrato pessoal.
Foi o que a 3ª turma do STJ esclareceu no julgamento do REsp 2.197.699/SP. Eis a síntese do caso: o condomínio recorrido ajuizou, no fim dos anos 1990, ação de cobrança de cotas condominiais. Após o trânsito em julgado (31/8/04), iniciou-se o cumprimento de sentença, com penhora do apartamento e, mais adiante, leilão eletrônico em 14/9/17, no qual o próprio condomínio arrematou o imóvel gerador dos débitos condominiais por R$ 606.032,01 – valor inferior ao crédito. A antiga proprietária (recorrente) apresentou exceção de pré-executividade para afastar sua responsabilidade pelas parcelas vencidas antes da arrematação, argumentando que, por se tratar de obrigação propter rem, o arrematante deveria suportar integralmente o passivo pretérito. O juízo rejeitou a exceção e o TJ/SP manteve a decisão, razão pela qual foi interposto o recurso especial.
O voto da relatora ministra Nancy Andrighi, profícuo no exame do conceito de obrigação propter rem e de sua transmissibilidade, ofereceu a melhor interpretação ao art. 1.345 do CC. O dispositivo estatui que “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios”. Logo, qualquer pessoa que suceda o titular do direito real assumirá a aludida obrigação.
Tal assunção pelo adquirente, todavia, não implica a extinção da responsabilidade patrimonial do antigo proprietário pelos referidos débitos – e este é o ponto fulcral do julgado. O que se tem é um elastecimento da responsabilidade patrimonial pela dívida condominial. Em outras palavras: o que se dá é a responsabilidade ex lege do adquirente, e não transmissão a este da dívida do alienante. É o que o acórdão sintetiza pelo seguinte trecho: “ainda que, em face do caráter propter rem da obrigação, ela deva ser assumida pelo novo titular do direito real, não há a exoneração automática do anterior”.
Se assim não fosse, o condomínio exequente e arrematante, no caso examinado pelo STJ, não mais poderia cobrar o débito condominial remanescente – isto é, que não seria satisfeito com a venda do imóvel. Caso houvesse a eximição da responsabilidade patrimonial da antiga proprietária, que habitou o imóvel durante o período a que se referem as cotas condominiais cobradas, credor e devedor passariam a ser a mesma pessoa: o condomínio. Estaria configurada a confusão (art. 381 do CC) e, portanto, a extinção da obrigação.
A conclusão – acertada – adotada pelo julgado gera consequências relevantes: a dívida permanece sendo do alienante, mas a responsabilidade patrimonial por tal débito passa a ser também do adquirente. Logo, caso o alienante pague, haverá fim na relação jurídica entre ele e o credor, com efeito liberatório. Caso o adquirente pague, há satisfação do credor sem liberação do devedor, pois poderá ser demandado, pela dívida, agora pelo adquirente. Ou seja: adquirente será, ao lado do alienante, responsável perante o credor, mas, por não ser devedor, caso pague, terá direito de regresso contra este por força da sub-rogação legal3.
Esse quadro é relevante também para hipóteses diversas do caso de arrematação do imóvel pelo próprio condomínio exequente (cenário fático do REsp 2.197.699). O STJ assentou, no julgamento do Tema repetitivo 886, que o que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de venda e compra, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. Logo, também nas hipóteses de promessa de compra e venda com imissão do promissário comprador na posse, a assunção ex lege da responsabilidade pelo adquirente, nos termos do art. 1.345 do CC, não importa exoneração automática do alienante quanto às cotas pretéritas. O condomínio pode direcionar a cobrança tanto em face do possuidor-adquirente quanto do promissário vendedor, ambos corresponsáveis pelos débitos condominiais gerados durante a ocupação do imóvel pelo alienante.
Em síntese, o julgamento do STJ ratifica a correta interpretação de que, nas obrigações propter rem, o dever de pagar pode acompanhar o bem, mas isso não significa que o antigo titular se libere automaticamente da dívida. O adquirente assume a responsabilidade pelo débito (que terá, caso pague a dívida, direito de regresso em face do antigo titular), sem afastar a responsabilidade do alienante pelas cotas vencidas enquanto proprietário.
Fonte: Eduardo Figueiredo Simões/ Migalhas