Por Xisto Mattos*
- Considerações Iniciais
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Desde então, o referido princípio irradia efeitos em diversos ramos do Direito, influenciando a interpretação de normas infraconstitucionais e inspirando a construção de uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva.
No entanto, a contemporaneidade nos desafia a refletir se a dignidade da pessoa humana — enquanto vetor axiológico — poderia ou deveria irradiar-se também em benefício dos animais não humanos. Trata-se, portanto, de investigar se a ordem constitucional permite uma hermenêutica extensiva que acolha os animais como sujeitos merecedores de tutela jurídica mais robusta, ainda que não lhes atribua a titularidade plena do princípio da dignidade em sentido estrito.
- Animais como sujeitos de direitos: superando a visão antropocêntrica
Tradicionalmente, o Direito ocidental estruturou-se sob uma visão antropocêntrica, relegando os animais à condição de coisas (res), conforme o legado romanista. Essa concepção, todavia, vem sendo crescentemente questionada diante dos avanços das ciências biológicas, da filosofia moral e da ética ambiental. A sensibilidade dos animais, sua capacidade de sofrer e de experienciar dor, são hoje fatos incontestáveis pela comunidade científica.
No plano jurídico, há um movimento paulatino de reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos despersonalizados, dotados de proteção normativa específica, ainda que não lhes sejam reconhecidos os atributos da personalidade jurídica plena. O artigo 225, § 1º, inciso VII, da Constituição Federal, estabelece como dever do Poder Público proteger a fauna e proíbe práticas que submetam os animais à crueldade. Esse dispositivo é emblemático ao reconhecer um valor intrínseco à vida animal, independentemente de sua utilidade ao ser humano.
Além disso, a Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), em seu artigo 32, tipifica como crime os maus-tratos e a crueldade contra animais. A jurisprudência também tem caminhado no sentido de reconhecer um estatuto jurídico peculiar aos animais, rompendo com o paradigma da sua instrumentalização.
Nesse contexto, emerge a tese de que os animais seriam destinatários indiretos do princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que este irradia seus efeitos para além da esfera intersubjetiva humana, conformando um sistema jurídico que exige respeito à vida em todas as suas manifestações, inclusive não humanas.
- A dignidade da pessoa humana como princípio-fonte e sua eficácia irradiante
A dignidade da pessoa humana, conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet, é tanto princípio fundamental quanto direito fundamental, com eficácia normativa plena e aplicabilidade imediata. Em virtude de sua centralidade axiológica e sua função de metanorma constitucional, ela atua como núcleo de interpretação para todo o ordenamento jurídico.
Assim sendo, ainda que semanticamente o termo “pessoa humana” limite sua aplicação direta aos seres humanos, é admissível conceber sua irradiação para outras esferas ontológicas, como forma de concretização dos valores da solidariedade, da ética do cuidado e do respeito à vida em sentido lato. Tal compreensão, longe de esvaziar o conceito jurídico de dignidade, o enriquece em sua dimensão ética, permitindo ao Direito acompanhar os avanços civilizatórios.
É sob essa ótica que autores como Lenio Streck, Dworkin e Martha Nussbaum sugerem que o Direito deve se abrir a uma hermenêutica responsiva à alteridade, rompendo com a rigidez do positivismo legalista e reconhecendo a dignidade não como monopólio humano, mas como expressão da sacralidade da vida e da recusa à arbitrariedade.
Portanto, se os animais são seres sencientes, dotados de interesses próprios, e se a Constituição veda a crueldade contra eles, parece razoável concluir que lhes é assegurado um núcleo ético-jurídico mínimo, equivalente à dignidade em sua feição objetiva. Tal núcleo impõe à sociedade e ao Estado o dever de assegurar-lhes uma existência livre de sofrimento desnecessário, de violência e de exploração abusiva.
- Jurisprudência e desenvolvimento normativo
O Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1856-6/AL, ao declarar a inconstitucionalidade de lei que autorizava a vaquejada como prática desportiva, reconheceu que o princípio da proteção contra a crueldade animal decorre diretamente da Constituição Federal, não podendo ser relativizado por valores culturais ou econômicos. Esse julgado representa importante precedente no sentido de atribuir densidade normativa ao princípio da proteção animal, com base em valores constitucionais superiores.
De igual modo, o Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo a possibilidade de indenização por danos morais decorrentes da morte de animais de estimação, em clara demonstração de que os vínculos afetivos entre humanos e animais são dignos de tutela jurídica.
Internacionalmente, países como Alemanha, Suíça, França e Portugal já promoveram reformas legislativas no sentido de reconhecer os animais como “seres sencientes”, superando a concepção patrimonialista. A União Europeia, por seu turno, em diversos documentos, reconhece a sensibilidade dos animais e impõe aos Estados-membros o dever de respeitar seu bem-estar.
No Brasil, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 304/2017, que visa incluir a proteção e o bem-estar animal entre os direitos fundamentais, o que demonstra uma crescente maturidade legislativa e filosófica acerca da necessidade de expansão da esfera de proteção constitucional.
- Considerações Finais
A extensão do princípio da dignidade da pessoa humana aos animais não significa, tecnicamente, equipará-los ontologicamente ao ser humano, mas reconhecer que a dignidade, enquanto vetor ético-normativo do sistema constitucional, possui efeitos irradiantes que obrigam o Estado e a sociedade a respeitar os animais como seres dotados de valor intrínseco.
Trata-se de um passo civilizatório. A dignidade irradiante, nesse contexto, funciona como instrumento hermenêutico que alinha a proteção dos animais aos valores fundantes da República: solidariedade, justiça, responsabilidade ambiental e respeito à vida.
É tempo, pois, de o Direito abandonar a inércia de uma tradição antropocêntrica excludente e abrir-se à ética da compaixão, tornando efetiva a promessa constitucional de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, comprometida com o bem de todos os seres vivos.
* Presidente da Comissão de Direito Condominial da OAB/Barra da Tijuca